lembra-te de não me esqueceres

"The most heartbreaking thing about Alzheimer's.) Grandma died almost two years ago. We had to tell Grandpa again. "(Postsecret)

Lembro-me de ti, de sorriso aberto e do teu abraço forte e apertado, com a tua forma sempre tão suave de olhar a vida. Eras o meu herói mais secreto, porque me conhecias melhor do que ninguém; porque sabias o momento exacto em que as minhas lágrimas se soltavam quando eu olhava disfarçadamente para o chão, porque conhecias os meus truques, segredos e manias...porque sabias olhar para dentro de mim e descobrir aqueles sorrisos que guardamos para as pessoas especiais - mesmo quando nem temos motivos para sorrir.

No dia em percebi que algo se passava, trocaste os talheres de mão e tentaste descascar as uvas de faca e garfo. "Isto não dá, não funciona!", gritavas tu a atirar com os talheres. Esquecias-te da colher no iogurte da manhã e deitava-la fora dentro do pacote, perdias-te na rua, olhavas para os objectos e tocavas-lhes e ficavas apreensivo a fitá-los. Foi o princípio de uma série de incidentes que, como uma bola de neve, me fizeram pensar que te podia perder.

Junto à tua poltrona havia fotografias da família e dizíamos os nomes dos filhos e das netas em cada fotografia para te avivar a memória. Um dia ao dar-te um beijo,  perguntaste-me: "Quem é esta menina tão linda?", e eu respondi "Sou a Ana, avô"; e tu pegaste na moldura com a  minha fotografia com cerca de quatro anos e repetiste "Ana, Ana...". E davas beijinhos nas fotografias quando eu não estava. "Ana, Ana, Ana...".  

Com o tempo foste-te esquecendo dos nossos nomes, um a um... As fotografias já não te diziam nada, assim como todos os objectos: desde o relógio, ao casaco, ao dinheiro, à escova de dentes, à colher do café... Nenhum deles te fazia lembrar o que eram, nem para o que serviam.
A pouco e pouco fui-te vendo a desaparecer diante dos meus olhos. Outrora tão cheio de vida, tão bondoso, tão forte e determinado, tão empreendedor, vivias agora num mundo só teu, feito de coisas que só tu vias e te faziam pensar a toda a hora, sem notares praticamente a presença das outras pessoas tão próximas...e sem as reconheceres.

Quando te olhava, sentado a olhar o vazio na minha direcção, ficava com uma réstia de esperança de que me reconhecesses, me falasses, me desses aquele assobio que fazias desde que eu era bebé e, que me dissesses que ia tudo ficar bem. Nessas alturas vinham-me as lágrimas aos olhos e fugia para a casa de banho para esconder a aflição, embrulhada em soluços aflitos, que sentia por te ver assim. 
Quando a situação piorou, foste para um lar onde iriam olhar melhor por ti, visto que começavas a ter cuidados médicos especiais. Chorei. Chorámos todos, por sabermos que não regressarias mais à tua casa. 

Quando te visitava esboçavas o que me parecia ser um sorriso e tentavas a custo retribuir-me o beijo na cara que te dava. Não consegui muitas vezes arranjar coragem para te ir ver. Sentia-me incomodada por não te reconhecer daquela forma, por pensar em ti como algo demasiado oposto àquele corpo numa inexpressiva cadeira de rodas. 
Por dentro sentia-me egoísta e frustrada por não acompanhar a minha avó, o meu pai e a minha tia em todas as visitas que te faziam. Simplesmente, doía-me demasiado e sofria por ir e por não ir, pois ficava a pensar nisso à mesma.

O dia chegou, em que ouvi um choro às duas da manhã nas escadas da minha casa; dessa vez era mesmo grave. E, quando no dia seguinte, estávamos a chegar ao estacionamento do hospital e o telemóvel tocou e aquela chamada - que ninguém queria receber- chegou, o chão faltou-me debaixo dos pés e nem me tentei segurar.
...
No caso da doença de Alzheimer, muitas são as dúvidas, muita é a esperança por um tratamento, por um travão que seja para que não haja uma perda tão veloz das capacidades motoras, psicológicas e de consciência dos pacientes.
A maior perda a que assisti, apesar de as ter chorado todas de forma diferente, foi a da dignidade humana, mais ainda do que a perda física da pessoa - ainda que lidemos com isso de forma diferente - é uma parte assustadora para a qual não estaremos nunca preparados.

Tenho a perfeita noção que o meu avô já nos teria abandonado em espírito há muito, embora a sua presença ali estivesse para, de alguma forma, nos acompanhar e nos confortar, apesar de nada dizer ou fazer - apenas estar.
Deixou-nos ao sabor do tempo, demasiado depressa e de uma maneira cruel para quem foi um exemplo de vida para todos os que o conheceram. Apesar de tudo, sei que lhe mostrámos sempre o amor incondicional, a dedicação e orgulho que sentíamos por ele.

A melhor lembrança que guardo dele será sempre o seu sorriso, aberto e sincero, o seu optimismo e a sua forma de mostrar sempre o quanto gostamos de alguém a cada dia -  foi o meu melhor professor de sempre.

nunca se esqueçam de dizerem o quanto gostam de alguém, principalmente hoje, amanhã, depois de amanhã e depois e depois e depois...

5 comentários:

MaGGie disse...

Ao ler este post emocionei-me pois relembrei-me de quando perdi o meu avõ. É uma sensação tão inexplicavel estar à beira daquela pessoa que sempre nos conseguiu fazer sorrir e esta não nos reconhecer.;(
Força :)

Rosa Cueca disse...

Não esquecemos aquele jantar :)
Custa-nos sempre mais do que pensaríamos, mas lá em cima temos still photos de todos os bons momentos e memórias e tenho a certeza que estás nelas *

Unknown disse...

Este post é um excelente exemplo do que é o drama da doença de Alzheimer. Um afastamento que dói muito a cada dia que passa...o ente consciente perde-se de si próprio e aqueles que o rodeiam assistem a uma degradação que começa leve e se agrava a cada dia que passa. É muito ingrato para quem convive e acompanha o ente querido...
A Ciência não tem desistido à procura de respostas. de terapias eficazes, que já estiveram mais longe. Um ano destes teremos uma boa surpresa, estou convicto.

Unknown disse...

Ana, posso dizer que chorei ao ler este teu texto.

beijinho grande*
JG

papoila na lua disse...

Emocionei-me tanto... Beijo grande, Ana querida <3